🍜O Dragão Silenciado: Texto 3 - Yakisoba: o prato que atravessou oceanos… e escondeu seu nome verdadeiro

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"Servido como japonês, silenciado como chinês — o yakisoba é o fio quente que costura a geopolítica no prato de quem nem imagina o gosto da verdade."


Da China imperial à praça do bairro: uma história de apagamento e reapropriação

Era uma noite comum de sábado em Duque de Caxias, uma cidade na Baixada Fluminense. As luzes da praça entre o Parque Paulista e o Parque Equitativa por vezes tremeluziam sobre os brinquedos recém-pintados pela prefeitura — as eleições se aproximavam, e até o concreto ensaiava promessas. Na quadra, garotos jogavam bola entre gritos e risos. Eles agiam como jogadores profissionais, ou ao menos tentavam. O ar quente era um caldeirão de cheiros: fumaça dos espetinhos, gordura do hambúrguer, os ingredientes do cachorro-quente e, invadindo tudo com doçura salgada, o aroma inconfundível do yakisoba saindo da chapa.

O som ambiente era Brasil puro: um pagode nostálgico, um funk estourado, um forró que não fazia o menor sentido, mas ninguém ligava. Em meio ao caos sonoro e olfativo, ali estava ela: uma barraca simples onde um grupo de chineses — sempre gentis, sempre discretos — manuseava o wok com precisão milenar. Espátula em punho, fogo alto, vapor no rosto. Como faziam toda semana. Como eu fazia quase toda semana. Pedir aquele yakisoba era meu rito. Meu conforto de fim de sábado ou domingo. Minha viagem improvisada à Ásia sem jamais ter deixado o PP (abreviação do nome do bairro). De frango, de carne, vegetariano, misto e de frutos do mar. Cada membro da família gostava de um.
Eu não sabia. Ninguém sabia. Mas aquele prato com nome japonês, vendido como japonês, não era japonês. A surpresa maior era perceber o quão natural era, para todos nós, ver chineses cozinhando “comida japonesa” e não achar isso estranho. Era só mais uma dessas distorções que a gente aprende a aceitar quando se cresce à margem: se é gostoso, se é barato, tá valendo. Mas havia ali uma história silenciada. Um nome apagado. Um povo inteiro que foi calado para que outro pudesse brilhar. O plot twist era que a os chineses não estavam cozinhando uma comida de outro país unicamente pelo seu ganha pão, mas estavam cozinhando sua própria comida.

Seu verdadeiro nome foi calado. Sua origem, como a de tantos outros elementos da cultura asiática popularizada no Ocidente, foi encoberta por uma longa sombra geopolítica: a Guerra Fria e o esforço global de isolar a China comunista.

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Antes de ser “yaki”, era “chao”: a origem esquecida

O yakisoba tem origem no prato chinês chǎomiàn (炒面), literalmente "macarrão frito", tradicional do norte da China, especialmente das regiões de Shandong e Hebei. O chǎomiàn é preparado com macarrão de trigo salteado em fogo alto, combinado com vegetais, carnes e molhos de soja escura e clara. A técnica do wok hei — o "sopro do wok", aquele sabor defumado gerado por temperaturas altíssimas — é parte essencial da arte culinária chinesa há séculos.

Em 1931, o Exército Imperial Japonês invadiu a Manchúria, região estratégica no nordeste da China composta por três províncias:Liaoning (辽宁), que era a mais industrializada da região e já foi capital do império Qing (antes da conquista de Pequim). Jilin (吉林) cuja capital Changchun foi a capital do Estado-fantoche de Manchukuo (1932-1945) e Heilongjiang (黑龙江), cuja capital é Harbin e faz fronteira com a Rússia.

Durante a ocupação japonesa, soldados e civis japoneses entraram em contato com o chǎomiàn (炒面). Ao retornarem ao Japão após a guerra, trouxeram consigo o gosto pelo prato. No entanto, registros históricos mostram que o chǎomiàn já circulava no Japão desde o final do século XIX, especialmente nas cidades portuárias de Nagasaki, Kobe e Yokohama, onde imigrantes chineses e trabalhadores portuários haviam introduzido a receita como uma opção rápida, barata e nutritiva para operários.

Com o tempo, o nome foi adaptado para o japonês: "yaki" (frito) + "soba" (macarrão). Um detalhe: soba, originalmente, é um macarrão de trigo sarraceno. Mas no yakisoba, o que se usa é o chuuka men (macarrão de estilo chinês à base de trigo). O nome japonês, no entanto, diluiu essa origem e passou a ser vendido como prato nacional.



Uma guerra ideológica no prato

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Após a Segunda Guerra Mundial, o Japão tornou-se um aliado central dos Estados Unidos no combate ao comunismo na Ásia. Enquanto a China de Mao Zedong passava por revoluções internas, fome e rupturas com o Ocidente, o Japão emergia como uma vitrine do capitalismo bem-sucedido. Com apoio maciço dos EUA, o país foi reconstruído e suas indústrias culturais passaram a ser exportadas como parte do chamado "soft power" japonês. Foi nesse contexto que muitos pratos chineses — inclusive o yakisoba — passaram por um processo de "nacionalização cultural". A comida chinesa era associada à pobreza, à desordem, à China comunista. A comida japonesa, por outro lado, passou a simbolizar organização, estética, exotismo palatável ao Ocidente. O yakisoba foi embrulhado nessa lógica: mesmo sendo de origem chinesa, passou a ser vendido como parte da nova identidade nacional japonesa — uma identidade filtrada, limpa e “livre do comunismo”.

Como descreve o historiador Ezra Vogel em Japan as Number One (1979), o Japão dos anos 60 e 70 era visto como exemplo de país asiático "moderno, funcional e ocidentalizado" — em oposição à China de Mao, que vivia sob bloqueio e desconfiança internacional.

Com a popularização dos restaurantes japoneses nas Américas e na Europa nas décadas de 1980 e 1990, impulsionada pela moda do sushi, do ramen e do minimalismo zen, o yakisoba chegou como "comida japonesa". Era um prato versátil, quente, barato, perfeito para food trucks, festivais de anime e eventos de bairro.

No Brasil, principalmente nas feiras, eventos nikkeis e bairros periféricos, o prato se estabeleceu como símbolo da fusão nipo-brasileira. E foi ali, na praça de Duque de Caxias, entre garotos de chinelo e donas de casa com sacolas de mercado, que o yakisoba virou jantar. Mas ninguém falava em chǎomiàn. Nem mesmo os próprios chineses que vendiam a comida o mencionavam como uma comida chinesa. Até hoje é vendida como yakisoba. Ninguém sabia — ou queria saber — da China. Nem mesmo eu ousava a perguntar, no meio de tanta gente já doutrinada a ser anti-China, que eu ouvia música chinesa, que sabia que havia um prato similar ao yakisoba.

O apagamento que virou sabor
O nome mudou. O país de origem foi substituído. O molho foi adaptado. A panela passou a ter outro sotaque. Como o jjajangmyeon na Coreia ou o gyoza no Japão, o yakisoba se tornou uma comida de travessia — mas sua travessia foi marcada pela geopolítica da negação.

A Guerra Fria não apagou apenas países do mapa: ela apagou receitas, vozes e memórias. Reescreveu menus, trocou nomes, limpou rótulos. A cultura chinesa, considerada “contaminada” pelo comunismo, foi silenciada. O Japão, por sua vez, tornou-se o filtro aceitável pelo qual a Ásia poderia ser consumida — literalmente.

Hoje, ao comer yakisoba na praça do bairro ou num restaurante em Manila - Filipinas, o sabor ainda é o mesmo: macarrão levemente tostado, legumes crocantes, molho espesso. Mas saber sua história muda tudo. A cada garfada, uma lembrança. De quem chegou, de quem se calou, de quem teve sua cultura desviada do nome. Comer yakisoba é, para quem conhece, um ato de reconexão — um lembrete de que, antes da política, existia apenas comida. E, com ela, as mãos de quem cozinhou, mesmo quando o mundo lhes virou as costas.


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