🍜O Dragão Silenciado: EP 1 - Jjajangmyeon: o silêncio espesso de um molho negro. A história de um prato que sobreviveu à geopolítica
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À primeira vista, uma tigela de jjajangmyeon pode parecer apenas conforto: o macarrão quente, coberto por um molho denso e escuro de feijão preto, que envolve cada fio como um cobertor de sabor. Mas a história que ferve sob esse prato não é de acolhimento. É uma história de exílio, apagamento e resistência. Poucos alimentos carregam, em sua textura e cor, um retrato tão simbólico da dor invisível da diáspora.
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Os marinheiros que trouxeram memórias no estômago
O ano era 1884. Incheon, então apenas um porto em transformação, foi declarado um dos poucos "portos abertos" sob os tratados desiguais firmados entre a Coreia e o Império Qing da China. Com isso, chegaram comerciantes, lavradores e marinheiros chineses — principalmente de Shandong — em busca de oportunidades. Não traziam muito: algumas malas, suas mãos calejadas e receitas transmitidas por gerações. Uma delas era o zhajiangmian, massa artesanal com molho de pasta fermentada de soja, feito para ser compartilhado em silêncio. Tem origem no zhajiangmian (炸酱面), um prato do norte da China feito com molho espesso de pasta de feijão fermentado (geralmente tianmianjiang, doce, ou doubanjiang, picante).
Nos becos da recém-formada Chinatown de Incheon, surgiram os primeiros restaurantes chineses, adaptando o prato à realidade local: a pasta de soja foi substituída por chunjang, o feijão preto mais doce e espesso; a carne de porco, cebola e batata foram incorporadas ao gosto coreano. Assim nasceu o jjajangmyeon, já então um híbrido cultural. O que se cozinhava ali não era apenas comida — era memória.
A guerra que partiu uma península… e suas comunidades
Quando o Japão deixou a península em 1945, após décadas de ocupação brutal, a esperança de um novo começo logo se desfez em duas metades: uma ao Norte, sob influência soviética, e outra ao Sul, sob tutela dos Estados Unidos. A divisão, mais do que geográfica, rasgou o tecido social da Coreia, inaugurando um campo minado ideológico que explodiria em 1950 com a Guerra da Coreia — um eco sangrento da Guerra Fria travada com soldados reais.
Nesse cenário em que qualquer sombra comunista era vista como ameaça, o inimigo interno passou a ser uma construção conveniente. E poucos foram tão facilmente encaixados nesse rótulo quanto a comunidade chinesa da Coreia do Sul — uma minoria étnica discreta, mas profundamente ligada à cultura local, com raízes fincadas desde o final do século XIX.
Durante os governos autoritários de Syngman Rhee e Park Chung-hee, entre as décadas de 1950 e 1960, o anticomunismo se institucionalizou como cruzada nacional. A Coreia do Sul, em nome da segurança e da identidade nacional, elegeu alvos silenciosos: as minorias étnicas associadas à China comunista, como os huaqiao, tornaram-se presenças indesejadas.
A repressão veio como uma maré que tudo arrasta. Restaurantes chineses foram fechados ou expropriados, famílias viram seus vistos negados ou revogados, e o controle sobre seus registros de residência tornou-se uma forma sistemática de exclusão. Quando a China de Mao Zedong enviou tropas para apoiar o Norte na guerra, a paranoia tomou forma: toda e qualquer ligação cultural com a China foi tratada como traição em potencial.
As escolas chinesas passaram a ser vigiadas. Os negócios familiares, sufocados por regulações e hostilidade. A cidadania foi, por décadas, uma promessa negada — e, com ela, o direito de existir plenamente como parte da sociedade coreana. Os que ficaram aprenderam a falar baixo. Os que saíram, partiram com um gosto amargo na boca.
Até o jjajangmyeon, símbolo do entrelaçamento cultural sino-coreano, foi tocado por essa lógica de apagamento. A receita foi adaptada, “nacionalizada”, despojada de seu nome original e de sua história. O molho espesso de feijão preto continuou a ser servido, mas sua origem chinesa foi apagada das narrativas oficiais. O prato sobreviveu — mas seu povo foi silenciado.
Em nome da segurança nacional, calou-se uma história de vizinhança e afeto. Em nome da identidade, apagou-se a diversidade. E o que hoje muitos comem com nostalgia, nasceu de um silêncio imposto.O apagamento como política de Estado
Na década de 1960, sob o governo autoritário de Park Chung-hee, a Coreia do Sul viveu um projeto agressivo de modernização econômica — mas também de homogeneização étnica. A ideia de uma “nação pura” (danil minjok, 단일민족) foi promovida como ideologia de Estado. Nesse cenário, a existência de minorias étnicas como os huaqiao (chineses da diáspora) era percebida como uma anomalia, um risco.
As escolas chinesas foram pressionadas a fechar. Imóveis não podiam ser comprados em nome de estrangeiros. Jovens chineses sul-coreanos viam suas possibilidades de emprego e cidadania limitadas. Muitos deixaram o país. Outros permaneceram, adaptando-se, escondendo sua identidade. E assim, como tantas outras vezes na história, o silêncio se tornou uma estratégia de sobrevivência.
Um prato, uma ausência
O jjajangmyeon tornou-se prato nacional, presença garantida em aniversários, mudanças de casa, noites solitárias. Mas poucos se perguntam: por que esse prato "coreano-chinês" não é acompanhado de uma comunidade visível de chineses na Coreia? Por que a palavra "chinês" foi reduzida ao adjetivo “junghwa” (중화), presente nas fachadas de restaurantes, mas esvaziada de presença humana?
O molho escuro do jjajangmyeon parece, hoje, um espelho opaco de um passado que não se quer ver. Um passado de vizinhança e depois suspeita; de encontros e depois exílios. Comer esse prato, sem conhecer sua história, é repetir o ritual do esquecimento.
Resistência pelo sabor
Ainda assim, o jjajangmyeon resiste. Em cada tigela há uma migalha de memória. Comer jjajangmyeon é, para quem conhece sua história, um ato político: o de se recusar a aceitar o apagamento. É lembrar que, antes das fronteiras e das guerras, havia gente. Gente que chegou pelo mar, que cozinhou com as mãos, que sonhou em silêncio.
A comida não apenas alimenta o corpo. Ela preserva aquilo que os documentos negam, aquilo que as narrativas oficiais abafam. O jjajangmyeon, com sua cor escura e sabor doce-amargo, é uma história comestível de uma Coreia que ainda precisa confrontar seus próprios fantasmas.
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