🥀 “Anthony Bourdain e o Fardo de Sentir Demais: Entre a Mesa, o Mundo e o Abismo”
📚 544 palavras • ⏱️ 3 min de leitura
Nem toda viagem tem volta — e alguns viajantes, como Anthony Bourdain, nos mostram que atravessar culturas é também atravessar a dor de existir num mundo desigual.
Anthony Bourdain era tudo, menos um apresentador comum. Chef por ofício, antropólogo por intuição e cronista da humanidade por vocação. Sua cozinha era o mundo, sua receita era a empatia, e seu prato preferido? A pluralidade humana — servida crua, quente, imperfeita.
Em tempos em que a gastronomia virou espetáculo e paladar virou status, Bourdain escancarava com charme cínico que comida boa mesmo é a que vem acompanhada de histórias, suores e sotaques. Fugindo do menu degustação das estrelas Michelin, ele preferia o arroz improvisado, a sopa de rua e o peixe assado em panela enferrujada. E nisso residia sua grandeza: mostrar que comer é mais do que nutrir — é habitar o mundo do outro, ainda que por um breve instante.
Ele entendia — mais do que muitos antropólogos com diploma dourado — que a comida é um código social. Onde há mesa, há narrativa. Onde há prato, há pertencimento. O programa dele era, na verdade, um ensaio sensível sobre o humano. Um manifesto ambulante contra a indiferença.
E, ainda assim, nos deixou.
Em 2018, durante as gravações de mais uma temporada do premiado Parts Unknown — Lugares Desconhecidos na versão brasileira — Bourdain foi encontrado morto na Alsácia, França. E o mundo perdeu uma das poucas vozes dispostas a encarar a beleza e a feiura da humanidade sem filtros.
Desde então, me pergunto:
Quantos sentimentos cabem num corpo que sente demais?
Quantas desigualdades é possível digerir sem intoxicar a alma?
Será que os mais inteligentes, os mais sensíveis à dor alheia, não carregam também o peso de uma consciência que nunca silencia?
Bourdain sabia que o maior abismo não era geográfico — era social. E talvez tenha sido justamente esse fosso, entre os que têm demais e os que nunca tiveram nada, que o engoliu aos poucos.
É curioso — e trágico — como os mais geniais entre nós, os mais atentos, os mais vivos, são também os que mais facilmente escorregam entre os dedos da sanidade. De Van Gogh a Nina Simone. De Sylvia Plath a Bourdain. Talvez pensar demais seja um veneno sutil. E sentir demais, um luxo que nem todos conseguem bancar.
A CNN Brasil relançou recentemente sua série aos domingos, às 19h45. Recomendo. Mas aviso: não é um programa sobre comida. É sobre vida. E, às vezes, sobre morte.
Nota:
Este texto foi escrito em 9 de junho de 2018, um dia após a morte de Anthony Bourdain. Hoje, revisitado, ele soa mais atual do que nunca.
Comentários
Postar um comentário